sábado, 15 de outubro de 2016

Miopia

Já faz muito tempo que eu me descobri míope. Um grau bem leve e por isso nem usava óculos e tinha certeza que estava tudo bem enxergar do jeito que eu enxergava.

Sem perceber, eu selecionava o que queria ver direito e apertava os olhos e, também sem perceber, selecionava o que queria deixar passar e nem fazia esforço. Era um ligar e desligar dos olhinhos apertadinhos automático. Até que cheguei em um limite de passar direto por conhecidos na rua, errar placa de trânsito e dar sinal para ônibus errado: hora de rever essa tal miopia. Foi quando larguei a rebeldia de lado, fui ao oftalmologista e fiz um par de óculos.

Praticamente com uma lupa na cara, pude ver, literalmente, que a miopia é um fenômeno social. A gente olha e enxerga como quer, como gostaria que fosse. A gente sabe que tem algo errado ali, ah, mas deixa pra lá, a gente finge que está tudo bem e segue em frente. No fundo, a gente sabe que pode ver melhor, ah, mas pra quê, desse jeito já está bom. Enxergar a vida tão de pertinho assim pode ser um processo perigoso, que envolve coragem e pré-disposição à dor.

Porque quando apertar os olhinhos sai do automático, você toma as rédeas da sua vida e passa a decidir o que ver e o que não ver de verdade. A miopia deixa de ser social e o que a gente antes fingia que estava bom, tem que ser arrumado para ficar realmente bom. O que a gente enxergava - e fantasiava - como uma certa realidade convencional toma um caminho sem volta na busca pela verdade, nua e crua, como ela é e sempre foi.

Hoje, com meus óculos na cara, deixei de ser míope rebelde mas continuo míope social. A diferença é que o apertar os olhos foi substituído por tirar e colocar uma lupa a minha frente e, a escolha de enxergar ou não as coisas como são, saiu do automático e tornou-se consciente.

Não, eu não uso óculos o tempo todo, porque no fundo, uma pitada de miopia social ainda me faz bem.

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